PEQUENOS ABISMOS
O livro Pequenos Abismos (2015), foi criado a partir das memórias suscitadas por um documentário chamado The Wheel of Time. Ao ouvir pela primeira vez o nome, devaneei na ambiguidade das palavras e, desfocando poeticamente, apreendi The Will of Time. O título original diz respeito à mandala budista feita de areia, uma bela parábola sobre a impermanência das coisas. Já o outro título, impreciso na sua ambivalência sonora, reverberou sobre a impermanência, me levando a pensar sobre a rebeldia do tempo. Essa confluência de sons e sentidos me fizeram trançar lembranças em pensamentos até chegar em um quarto mágico de vários domingos, de tantas infâncias. Fechei os olhos e reapareceu na memória uma porção de pequenas formas circulares. Me deixei ficar nesse lugar repleto de pequenas imagens arredondadas muito parecidas entre si e ao mesmo tempo tão diversas. Todas elas feitas repetidas vezes, sem cessar umas sobre as outras, se acumulando pelos móveis e pelo chão, ecoando como os mantras cantados pelos monges no filme que ativou toda essa fabulação.
Fábula Pequenos Abismos
O encontro se dava aos domingos. Os adultos saíam para assun-tos importantes e eu ficava com o poeta da casa. Tudo então se transformava. O quarto, por exemplo, ficava lotado de papéis que escorregavam dos móveis até o chão. Em cada um havia uma imagem circular feita de água e nanquim. Era lindo de ver, melhor ainda imaginar como fazer.
Vou contar aqui tanto o que me lembrei quanto o que me esqueci: os pedaços de papel eram cortados em um formato pequeno e fácil de ser manuseado, de forma que um mínimo movimento das mãos pudesse se transportar imediatamente para o papel. Sobre este papel fazíamos, com pincel limpo, um caminho d’água tendendo para o formato circular. o esboço de um desenho cego começava.
Em seguida, com outro pincel, provocávamos o encontro d’água com a tinta. Bastava uma gota de tinta e a pintura também começava. As mãos iniciavam pequenos movimentos repetitivos e sinuosos, impulsionando a tinta a percorrer os caminhos d’água até tomar força e dominar o fluxo, ao mesmo tempo em que era limitado por ela. A pintura seguia acontecendo dentro dos limites do desenho feito pela água.
O fluxo de tinta passava e repassava, pintava e repintava fluindo sem pressa alguma. Em um dado instante, o movimento se tornava mais lento e era suspenso. O fluxo de tinta ia encontrando o seu repouso e secava. Durante a secagem, a pintura continuava acontecendo sozinha, até que tudo ficasse completamente seco. Esse lentíssimo movimento, o persistir do desenhar, parecia mágico porque continuava mesmo sem o impulso incentivador das mãos.
Depois retomávamos o mesmo procedimento do início, desta vez sobre a imagem seca. Primeiro a água, depois a tinta e tudo novamente. Surge uma nova pintura misturada com a anterior. Neste ponto, eu queria parar para não perder a imagem para sempre, mas o poeta insistia em continuar, esticando o meu tempo de medo rumo aos riscos do obscuro.
Veja a fábula narrada no livro‑objeto e suas imagens.